News Farma (NF) | Todos os anos, 33 mil pessoas morrem por infeções causadas por bactérias resistentes a antibióticos na Europa, sendo que Portugal é o 4.º país com mais casos. Como comenta esta realidade? Como pode ser justificada esta emergência de resistências?
Dr. Paulo André Fernandes (PAF) | As bactérias possuem mecanismos naturais de resistência a compostos com ação antimicrobiana existentes no meio ambiente, muitos deles produzidos por outros microrganismos, que lhes permitem sobreviver. Esse é um fenómeno natural. Quando expostas a antibióticos, as bactérias tendem a desenvolver progressivamente mecanismos do mesmo tipo, que lhes permitem resistir ao efeito destes fármacos. Quando esta exposição é excessiva, como o que tem acontecido desde meados do século passado, mercê do uso inapropriado dos antibióticos, o fenómeno da emergência de resistência é potenciado. Utilizando antibióticos em excesso, eliminamos as bactérias mais sensíveis, criando condições para a proliferação das mais resistentes. Matamos, por exemplo, as bactérias que vivem no nosso organismo sem provocar doença e que são essenciais para impedir a proliferação das patogénicas. Por seu lado, em muitos casos estas bactérias partilham entre si os mecanismos de resistência, transmitindo-os entre espécies. Portanto, quanto pior utilizamos os antibióticos, mais aumentamos a prevalência de estirpes resistentes, cada vez resistentes a mais antibióticos. Se além disso não prevenimos suficientemente a transmissão das infeções provocadas por estas estirpes, temos a tempestade perfeita e chegamos inevitavelmente à situação atual, que poderá melhorar ou piorar, consoante as medidas que conseguirmos implementar.
NF | Esta é uma das conclusões do estudo publicado na The Lancet Infectious Diseases. Quais os objetivos e as motivações que estiveram por detrás do estudo? Como foi desenvolvido?
PAF | Há muitos anos que a comunidade médica e científica, em Portugal e no resto do mundo, vem alertando para o aumento das resistências aos antibióticos. Apesar de nos últimos anos se ter conseguido dar mais visibilidade ao problema, muitos setores fundamentais para a sua mitigação, como as administrações hospitalares e os decisores políticos aos vários níveis, continuam sem lhe atribuir a importância devida, o que se traduz na subdotação de recursos, principalmente humanos, destinados à sua abordagem efetiva. Este continua a ser um obstáculo, não só em Portugal.
Existe a noção de que não basta falar em números e ratios de infeção para inverter esta situação. É importante que se perceba que o fenómeno das resistências tem consequências graves na sociedade, traduz-se em mortes, incapacidade e custos acrescidos elevados, com tradução nos orçamentos da saúde, mas também no PIB de cada país, nos níveis de pobreza, nas próprias trocas comerciais em todo o mundo, como salientou já o Banco Mundial e, muito recentemente, a OCDE, partindo das conclusões do estudo em apreço.
Este trabalho foi desenvolvido sob a égide do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC), com base nos dados de vigilância epidemiológica das infeções e das resistências aos antibióticos que cada país envia para a monitorização europeia. São dados rigorosos, relativos a 2015, os quais tinham já sido validados e publicados em novembro de 2016, sem este tipo de processamento, e sem qualquer contestação. Pegando nesses dados, e tendo desenvolvido um modelo de cálculo que criaram num estudo anterior, os autores determinaram agora o número de mortes atribuíveis a cinco infeções hospitalares provocadas pelos principais microrganismos multirresistentes. Esta determinação foi efetuada para o total e para cada país participante, com o objetivo de permitir que cada um, com base na identificação dos seus problemas, procure as melhores soluções.
NF | Que outras principais descobertas podem ser destacadas?
PAF | No nosso caso, ter a noção clara que mais de três pessoas morrem todos os dias por causa destas cinco infeções hospitalares provocadas pelos microrganismos estudados e o facto de estes números serem afirmados num estudo efetuado por uma instituição prestigiada como o ECDC, e publicados numa revista de referência mundial como o Lancet, faz com que ninguém possa dizer que desconhece o problema ou desvalorize a sua dimensão e gravidade. Outros estudos tinham já publicado números de mortes atribuíveis a diversas infeções hospitalares. Mas este vai mais além, no que respeita a número de doentes envolvidos, e utiliza uma ferramenta de cálculo anteriormente validada e inovadora. É um estudo à escala europeia, que vai fundamentar o ajustamento de planos e políticas de abordagem do problema, em todos os países participantes. Por outro lado, também de forma inovadora e para além do número de mortes, o estudo avança com o cálculo da dimensão da incapacidade provocada por estas infeções, dando uma ideia clara das graves consequências para a sociedade que esta situação implica e implicará, as quais nos afetarão se nada de novo fizermos até lá.
O estudo confirma que, na sua maioria, estas infeções são adquiridas no hospital, aumentaram entre 2007 e 2015 e determinam a perda de um número de anos de vida ajustados para a incapacidade idêntico à soma das provocadas pela gripe, tuberculose e infeção pelo VIH, dando assim uma ideia clara da magnitude do problema. Por outro lado, verifica-se que as infeções e os microrganismos mais relevantes não são os mesmos em todos os países, conclusão que pode fundamentar abordagens ligeiramente diferentes de país para pais.
NF | Através dos resultados do estudo foi possível aferir que a mortalidade e a incapacidade são mais significativas nos bebés com menos de um ano e nas pessoas com mais de 65 anos. Porquê?
PAF | Porque nestes estratos etários as pessoas são mais suscetíveis à infeção. As crianças mais pequenas, tendo ultrapassado o período no qual contam com a imunidade passiva fornecida pela mãe, primeiro in útero e depois pelo leite materno, não desenvolveram ainda de forma integral os seus mecanismos de imunidade que lhes permitam lidar eficazmente com as infeções. Nos mais idosos, mercê das alterações próprias dessa fase da vida e principalmente das comorbilidades que frequentemente se instalam, concorrendo para a criação de um estado de imunodepressão, o risco de infeção é também maior. Em alguns casos, as terapêuticas dirigidas a essas comorbilidades e a sucessão de cursos de antibioterapia motivados por infeções entretanto contraídas, principalmente se inapropriados, aumentam a suscetiblidade a infeções por microrganismos multiresistentes.
NF | De acordo com a Direção-Geral da Saúde, ainda que o número de casos em Portugal esteja bastante acima da média, tem vindo a registar-se uma redução. Como pode ser justificada esta mudança?
PAF | Sim, de acordo com os resultados preliminares do estudo de 2017, há menos infeções. Mas aumentaram as que são provocadas por agentes mais resistentes aos antibióticos, portanto mais difíceis de tratar, com pior prognóstico e maior mortalidade atribuível.
Há mais de 40 anos que muitos profissionais, de forma progressivamente mais organizada, têm trabalhado para enfrentar o problema da infeção hospitalar e da utilização correta dos antibióticos em Portugal. Mas, quando em 2012 se percebeu que no estudo europeu de prevalência de infeção e utilização de antibióticos tínhamos ficado em último lugar, éramos o país com mais infeção e dos que mais antibióticos utilizavam, este resultado provocou uma onda de choque que se conseguiu que chegasse, de alguma forma, aos decisores e teve como resultado a criação do programa nacional prioritário na DGS, o PPCIRA. Mais que um ajustamento organizativo com suporte legal, os profissionais envolvidos nesta estrutura conseguiram que este passo se acompanhasse da criação de um momentum, como uma vaga de fundo que provocou um salto qualitativo e de efetividade no trabalho nesta área a nível nacional. Uma das causas desta melhoria foi o despacho de estrutura do PPCIRA, no qual se avançou na consagração legal dos recursos que deveriam ser alocados, principalmente a nível local e regional. Passados cinco anos sobre a publicação do despacho n.º 15423 / 2013, e embora as suas disposições continuem a não ser cumpridas na maior parte das unidades de saúde, a pressão que gerou determinou, no geral, um aumento dos recursos disponíveis. Direções de trabalho implementadas pelo PPCIRA, com destaque para os programas de apoio à prescrição antibiótica e a publicação de várias normas nacionais, traduziram-se na melhoria das práticas de prevenção da infeção e de prescrição antibiótica, em diversas unidades de saúde portuguesas, uma vez aplicadas pelo empenhamento dos profissionais, nos cuidados prestados e nas terapêuticas prescritas.
O desafio e projeto “Stop Infeção”, da iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian, demonstrou uma vez mais que, garantindo recursos e otimizando processos de trabalho, se conseguem melhores resultados.
Importa agora que não sejam utilizados os resultados de prevalência de infeção conseguidos em 2017 para, demagogicamente, se concluir que os recursos são suficientes. Os microrganismos mais resistentes continuam a aumentar, longe de diminuir, pelo que temos que aumentar os recursos alocados, cumprindo o legalmente previsto.
NF | Que estratégias podem e devem ser adotadas para controlar o problema?
PAF | As estratégias são conhecidas e constam de diversas recomendações, nacionais e internacionais, emitidas pelos organismos oficiais e pelas sociedades científicas de referência. Só temos que as aplicar, para o que é indispensável dispor nas unidades de saúde de profissionais suficientes, com formação e horários dedicados.
Por um lado, e já que a utilização inapropriada de antibióticos é o principal motivo do aumento das resistências, temos que melhorar a qualidade desta utilização. A estratégia mais recomendada, de resultados demonstrados, é a chamada stewardship antibiótica, um conjunto de iniciativas tendentes à utilização judiciosa dos antibióticos, tendo como cerne o apoio à prescrição, mas que ultrapassa em muito esse momento. Já existem programas deste tipo com qualidade entre nós (PAPA), mas numa minoria de hospitais e em muito menos ACES e UCCI. Tendo em conta que na comunidade são utilizados mais de 95% dos antibióticos consumidos entre nós, esta carência tem que ser resolvida. O problema é que estes programas funcionam com base em profissionais e a sua alocação a esta frente exije sensibilidade dos decisores para a sua relevância, a qual é ainda escassa.
Por outro lado, temos que prevenir de forma mais efetiva a transmissão da infeção, principalmente nos hospitais, garantindo qualidade no cumprimento de precauções básicas de controlo da infeção, com destaque para a higienização das mãos, e pondo em prática procedimentos de identificação precoce dos doentes colonizados, sem sintomas mas que podem transmitir o microrganismo, como base para medidas adequadas de barreira, segundo as vias de transmissão.
Importa também que seja aumentada a literacia das populações para este problema, já que cidadãos informados serão importantes aliados no esforço de utilização correta dos antibióticos prevenção da transmissão da infeção nas unidades de saúde.
NF | Há mais algum assunto que queira destacar?
PAF | Os números agora conhecidos refletem rigorosamente a realidade europeia e portuguesa de 2015. Estes dados foram apurados em meados de 2016 e sujeitos a um processamento complexo e demorado, o que levou a que só agora fossem publicados. Os avanços em ciência fazem-se desta forma. Um artigo científico desta dimensão e alcance não é uma notícia jornalística de última hora. Da mesma forma, nos Estados Unidos foram publicados agora, a 1 de novembro, os resultados do estudo de prevalência de infeção hospitalar em 2015. São dados do mesmo ano que os do estudo europeu, revelaram prevalência de 3% de infeção, quando a nossa, em Portugal, era de 7,8%. Só que enquanto o Center for Disease Control and Prevention (CDC) de Atlanta conclui que o estudo, repito, de 2015, é importante para se assinalarem áreas de melhoria, a partir de 3%, em Portugal os organismos oficiais apressaram-se a dizer que o estudo não reflete a realidade nacional pressupondo, sem qualquer fundamento, que em 2015 teríamos uma prevalência de infeção maior que os 7,8% de 2017. Mas a questão não é só essa. A pergunta que se deve fazer aos que pretendam pôr em causa estes números é: se o número de mortes anuais em Portugal por infeções por microrganismos multiresistentes não for, hoje em dia, de 1150 mas 1000, ou 750 ou se, por redução ao maior absurdo, fosse de 500, não seria grave? Não teríamos que fazer mais para reduzir este número? Não mereceriam, as vítimas e as suas famílias, todo o respeito e empenhamento por parte dos organismos oficiais? E não deviam estes organismos, como fez o CDC, comprometer-se a procurar soluções para mitigar o problema, em vez de se precipitarem na senda, impossível, da sua negação?